a presença do feminino em catulo

04 de outubro de 2007

O post enorme abaixo nasceu do meu ego inflado por uma nota bonitinha em Estudos Clássicos II no meu curso de inglês. Essa é a história curta. A história longa é que eu enrolei 2 meses pra fazer um artigo sobre Catulo, poeta romano meio pederasta pra moral atual que adorava palavrões e diminutivos, e deixei pra fazer tudo no lindo e ensolarado feriado de 7 de setembro que perdi, sexta-feira, pra então entregá-lo na quarta seguinte.

Acabei me dando bem e fiquei bastante satisfeito com o resultado. De 157 alunos em 4 turmas eu fui um dos 13 sorteados com 40 pontos, máximo desse trabalho. Com a qualidade questionável do meu artigo devido à pressa extrema tente imaginar os dos outros que tiveram notas bem menores do que essa. Viu só, preguiçosos não são burros, somente são... preguiçosos!

Foi meio complicado achar material em português sobre esse tema pro Catulo (os outros eram intertextualidade entre ele e outros escritores, mitologia greco-romana presente no codex dele, tratamento dado ao amor, poema versus poeta e a linguagem usada nos carmina), então resolvi "bostar" online o meu PDF na esperança e no entusiasmo de alguém copiar e colar os meus parágrafos e roubar meu copyright ano que vem, ao invés de afundar seu desktop com tantos ícones de textos pra ler após uma blitzkrieg de pesquisa que publico só um mês depois.

À propósito, o post anterior é um aemulatio do carmen 3 do Catulo, eu apaguei o crédito no final dele porque ia postar isso aqui de qualquer forma mesmo. Eu nunca gostei de poesia e continuo não gostando, mas Catulo é simplesmente irresistível. Poemas simples, curtos (umas 5 linhas cada) e que tratam do cotidiano: roubos, brigas, sexo anal entre homens e também de coisas singelas como a morte de um passarinho e a saudade de amigos. Se puder, leia. Catulo definitivamente é um dos primeiros poetas populares, fugindo da babação de ovo lírica ou amor exagerado que costuma ser o significado de "poesia" até hoje.

Puristas, me perdoem! Não deu tempo de fazer em LaTeX. Não segui norma de ninguém. Não botei o texto em nenhum corretor ortográfico ou gramatical. Minha bibliografia não possui referências ao longo do texto (que devo dizer faz bastante uso da fabulosa e altamente recomendada tradução bilíngue feita pelo João Oliva Neto em O Livro de Catulo), tá juntado-tudo-de-uma-vez-um-montão-no-fim-do-ano e eu assumi na cara-de-pau que não achei nada decente pra falar sobre a maldita voz feminina da qual falo no meio do artigo. Aqui vamos nós...

Esse trabalho tenta documentar o maior número de elementos femininos presentes na obra do poeta romano Gaius Valerius Catullus pois, ao que tudo indica, é quase impossível debater ou estudar Catulo sem acabar esbarrando em personagens ou sombras femininas contidas nos seus textos, principalmente pelo fato de Catulo, um dos neoteroi, privilegiar temas eróticos em seus carmina.

Além das diretas menções a mulheres em muitos de seus poemas, encontra-se referências a elas também na chamada “voz feminina” que Catulo emprega em alguns escritos. Entende-se como central a presença enigmática de Lésbia, mulher casada de nível aristocrático com quem supostamente Catulo teria tido alguns casos amorosos. O relacionamento entre eles, a real história de Lésbia e sua presença nos poemas, bem como as relações intertextuais entre quem de fato teria sido ela, ou não, e personagens populares relacionados também foram estudados (a saber, comparações simplificadas entre Clodia, Lésbia e Atia dos Julii).

É inegável a importância dada às mulheres nos poemas de Catulo. A partir de um corpus público disponível na Internet, que conta com traduções dos seus textos para mais de 30 línguas, incluindo o português brasileiro, foi possível fazer um levantamento informal de alguns termos que nos permitisse medir essa importância. Contudo, isso não deve ser tomado como estritamente científico, mas de qualquer maneira serve para demonstrar essa presença do feminino de forma substancial.

Revisando todos os 116 poemas do autor traduzidos para o inglês (por simples motivo de completude, uma vez que nem todos estavam disponíveis em português até a data presente) nota-se 47 menções diretas e indiretas à Ela, 26 menções à Menina, 18 trechos onde a palavra Mãe aparece e 15 onde aparece Mulher. Encontra-se ainda 14 referências explícitas à Lésbia, 9 menções a Esposa, 8 para Dona, 7 para Deusa e 6 referências à Irmã. Em outros trechos também existem 4, 3 e 2 menções à Noiva, Filha e Moça, respectivamente. Todos esses números são originais e foram filtrados usando buscas numeradas diretamente no site do pesquisador Rudy Negenborn (primeira referência bibliográfica listada no fim do trabalho).

Tantas ocorrências a personagens femininos não param nessa lista. Há vários poemas com chamados a nomes de deusas como Vênus, Cibele (a Grande Mãe deusa romana, comentada nessa disciplina), Latona, Hebe, Diana, Anfitrite e Tétis (ambas Nereidas e a última citada como esposa de Peleu). Existe também uma outra categoria de poemas com personagens femininas mas com papéis menos relevantes como: as Ménades ou Bacchantes, seguidoras de Dionísio; as Hamadríades; as Galas, espécie de sacerdotes transexuais de Cibele; Hipsitila; Laodamia; Maecilia, uma adúltera não identificável; Helena de Tróia e Penelope. Em um de seus maiores poemas, e de estilo mais sério, Catulo trata do casamento de Aurunculéia, também.

O tratamento dado a cada uma dessas mulheres varia razoavelmente, especialmente, é óbvio, quando se trata de Lésbia. De fato a maioria delas é somente citada em passagens que traçam comparações ou fazem alusão a alguma história conhecida, como nos poemas 43 e 86 em que ele a compara com algumas delas. Na sétima referência bibliográfica encontra-se uma fantástica organização dos poemas de Catulo separada pelas formas de tratamento direcionado para Lésbia. Sempre amoroso e odioso (carmina 107 e 58, na sequência):

Assim, alegra-me também (mais vale que ouro)
Que estás de volta, Lésbia, a mim, que anseio, […]
Quem vive mais feliz do que eu ou quem dirá
Que há coisas mais queridas nesta vida?
[João O. Neto, 1996]

Lésbia, aquela, única que Catulo
Amou mais que a si e todos os seus,
Agora nos becos e encruzilhadas
Descasca os filhos de Remo magnânimo.
[João O. Neto, 1996]

O relacionamento entre os dois através dos poemas segue com momentos altos e baixos, que aparentemente não constituem um padrão, mas existe uma sequência, mesmo que imprevista, na paixão raivosa que Catulo tem por Lésbia. Ora Catulo trata sua principal inspiração feminina com delicadeza e doçura, ora ele se revolta e a amaldiçoa e a ofende (poemas 5 e 8 respectivamente), como que se criasse uma leve tensão entre um poema e outro:

Vamos viver, minha Lésbia, e amar, […]
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
Muitos mil, depois outros sem fim, […]
Vamos perder a conta, confundir,
Pra que infeliz nenhum possa invejar […]
[João O. Neto, 1996]

Outrora brilharam-te dourados sóis
Quando ias aonde levava a menina
Amada por nós como ninguém será; […]
Agora ela não quer: tu, louco […]
Vai, menina, adeu, Catulo já resiste, […]
Mas quando ninguém te quiser vais sofrer. […]
Ai de ti, maldita, que vida te resta?
Pois quem vai te ver? Pra quem te enfeitarás? […]
[João O. Neto, 1996]

Ainda, mesmo que de forma quase invisível até se conhecer o contexto da obra deixada, existe uma ligação direta entre Catulo e Safo, uma famosa poetisa grega que teria nascido na ilha de Lesbos, famosa por sua cultura, e que foi traduzida e adaptada do grego para o latim por Catulo em seu poema 51. O fato de Lésbia ter seu nome inspirado em Safo e na ilha de Lesbos (como se verá a seguir) nos revela a possível intenção de Catulo de pintá-la como mulher de paixão, personalidade forte e refinamento.

Parece existir uma outra característica nos escritos, que surgiu espontaneamente depois de alguma pesquisa, chamada “voz feminina”, porém o material que foi encontrado (ou que na verdade não foi) é muito parco para se estudar e comentar, infelizmente. Nas referências bibliográficas não parece existir nada muito concreto sobre isso, mas as referências a essa “voz feminina” continuam.

Aparentemente isso se deve ao poema 51 que Catulo modelou a partir do poema 31 de Safo (seu aemulatio, portanto). Nele, Safo apresenta uma gama de sentimentos e sensações de uma mulher observando um homem conversando com outra mulher talvez, ciumenta, mas Catulo precisou inverter os gêneros do poema para ele e Lésbia, para que não corresse o risco de criar algum conteúdo mais feminino, uma vez que tais sentimentos apresentados no poema 31 de Safo estavam sempre atrelados a submissão feminina pelos sentimentos:

Lésbia, fico mudo, sem palavras para dizer-te.
Mas, ao me faltarem então as palavras,
Um fino queimor se espalha por meus membros todos,
Meus ouvidos zuem com seu próprio som,
Meus olhos ficam cegos numa dupla escuridão.
[João O. Neto, 1996]

Uma outra possível confirmação da presença feminina em Catulo é interpretando seus poemas com noções sexuais modernas, onde se vê trechos de homosexualidade explícita, que com frequência mostra Catulo tratando outros homens como “mulher”. O poema 57 pode exemplificar isso através da seguinte passagem:

Tudo certo entre os chupadores ímprobos,
Mamurra, que é passivo, e César. […]
Numa caminha só dois pedantinhos,
A fim de amantes um não menos que outro,
Companheiros rivas de menininhas […]
[João O. Neto, 1996]

No tempo de Catulo era aceitável que um homem tivesse relações homosexuais desde que ele sempre permanecesse como dominante. Uma exceção aceitável era quando um homem estivesse quase que dominado sexualmente por uma mulher (pelo desejo, não como um papel). Em qualquer outra situação, como passivo numa relação por exemplo, o homem era visto como afeminado ou mesmo como uma mulher. Essa pode ter sido a intenção ao retratar seu desafeto Mamurra como passivo de César no poema 57.

Todavia, o próprio Catulo parece se encaixar nos dois últimos traços. Ele aparenta ser submetido por sentimentos amorosos vistos como femininos (ou faz com que pensamos isso) e também deixa provas de seu caso com Juvêncio. De todos os seus poemas, 26 dirigem-se à Lésbia e 6 são para seu garoto, Juvêncio. Mesmo rebatendo as críticas aos seus poemas 5 e 48, que tratam dos beijos com Lésbia e de sua paixão pelo jovem, não se sabe se Catulo era passivo, e consequentemente a mulher, nesse caso.

Há em vários poemas também outras formas de feminino sobre as quais Catulo escreve. Essas seriam as referências às prostitutas com quem que ele tinha contato e à Átis, um transexual. O poema 63 é somente sobre ele e sua história. É curioso ver o tratamento feminino que Catulo impõe sobre Átis chamando-o de “ansiosa”, “trêmula”e utilizando outros termos com artigo feminino.

Por referências achadas, a moral de Roma na época de Catulo aceitava que um homem se tornasse mais feminino, e que uma mulher se tornasse mais masculina também, desde que se respeitasse o outro sexo, com honra às características psicológicas do sexo oposto, não sendo somente um boneco. Trecho do poema 63 sobre Átis:

Átis, sobre alto-mar levado em lenho célere, […]
De irada fúria ali tomado, alheio o espírito,
Cortou com pedra aguda o peso das virilhas.
Quando sentiu um corpo inerte e não um homem, […]
Átis, falsa mulher, […]
“Mulher, adolescente, efebo, menino, eu
Fui a flor do ginásio, era a glória do estádio. […]
Já dói-me o que já fiz e já, já me arrependo”.
[João O. Neto, 1996]

Voltando ao poema anterior da série composto pelos poemas longos de Catulo encontramos aquele dedicado ao casamento e invocação a Hímen, o carmen 61 (que se extende, ao que estuda-se aqui, através do poema 62). Nele segue uma sequência de procedimentos para que o casamento se consuma e pode-se perceber o que se espera da noiva de forma clara. Ela tem o dever de agradar seu novo esposo, possui obrigações para com Hímen e seu marido:

Sem ti nenhuma casa
Pode dar filhos […]
Abri as trances, moça! […]
Não chores que não corres
Perigo, Aurunculéia, […]
E, noiva, tu não negues
Os que o marido peça
Por não pedir alhures. […]
[João O. Neto, 1996]

Com relação ao tratamento dado a Lésbia, a figura feminina principal dos 116 poemas, é preciso antes entender quem foi Lésbia para Catulo, pois isso pode dar luz a alguns conflitos dos poemas entre o homem Catulo e a extremamente feminina Lésbia, que nos dá a impressão de ser quase sua femme fatale.

Como já foi visto durante o curso e confirmado anteriormente, acredita-se que Lésbia na verdade era uma alegoria, um apelido de mesma métrica vogal, para Clodia, uma romana com a qual o poeta, imagina-se, teve alguns casos amorosos ou simplesmente sexuais. Clodia frequentemente aparece retratada como lasciva e liberta sexualmente, inclusive sob acusações de incesto com seu irmão Clodio.

Muitos poemas de desprazer ou em homenagem à Lésbia são influenciados na verdade pelo impacto que ela parecia causar em Catulo e pela forte personalidade feminina de Clodia, que inclusive foi peça de montagem para a personagem Attia dos Julii no seriado Roma, produzido pela BBC em 2005 e que deu prêmios oficiais à atriz que a interpretava.

No seriado, Attia parece ter alguma coisa em comum com os relatos de Clodia e Lésbia, sendo volúvel sexualmente, lasciva, extremamente bela e de contatos influentes, além de com frequência manipular os desejos de homens atrás dela. Até que ponto ela foi só uma representação grosseira de Clodia (e naturalmente de Lésbia) não se sabe, mas o seriado Roma foi creditado como sendo um dos mais fiéis painéis da verdadeira Roma e de seus personagens reais.

Além da “voz feminina” e de toda a história em volta de Lésbia (ou Clodia), é importante não nos esquecermos que, bem como o próprio Catulo lembra dentro de um de seus poemas, pode haver uma espécie de abstração da presença feminina como alvo dos poemas. Por mais que isso pareça claro, é impossível dizer com certeza se existiu de verdade alguma figura feminina real ou mulher que incentivasse o intelecto de Catulo. A variação no tratamento dado a Lésbia é profunda o suficiente pra sustentar isso em partes.

Tudo pode muito bem ter sido uma criação artística para atribuir maior valor aos poemas. Novamente, como ele mesmo nos diz, sua linguagem é por vezes maquiada e não necessariamente reflete sua personalidade fora da poesia. Talvez o mesmo se aplique em algum nível à essa presença do feminino em seus textos. O “amo e odeio” de Catulo pode muito bem ser uma fachada lírica sem uma presença feminina na vida real. Nada impediria isso, tampouco tiraria seu mérito.

Todas as referências bibliográficas a seguir foram checadas entre 5 e 10 de setembro de 2007. Caso existe alguma divergência entre o que está escrito no trabalho com base no que foi pesquisado e o que está online basta conferir em web.archive.org uma cópia de cada página nessa data específica.

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