pra minha eterna ramona

05 de junho de 2007

Um dos meus maiores amores na vida se foi.

Ramona: novinha na janela

A minha cachorra Ramona morreu sábado de manhã, após uma longa batalha contra uma doença maldita e cruel. Num curto período de 30 dias minha cachorra parou de saltar, latir, me lamber... parecer feliz. Em um mês minha família passou por uma provação pela qual nunca havia passado antes. Ter lido recentemente Marley & Eu e ter sentido toda aquela torrente de emoções, minha catarse canina como falei na época, foi uma boa preparação. Meu pai e eu sentimos isso, pelo menos. Depois de quase 10 anos sem criar cachorros, a gente precisou de um ensaio desse pro que estava por vir e mal sabíamos.

Claro que isso interessa somente pra nós. Mas, todo o tratamento pelo qual minha pequena passou merece ser documentado. A doença (não confirmada nem após a morte dela direito) é pesada e eu não gostaria que nem o cão da pior pessoa do planeta a tivesse. Se tudo o que falar aqui ajudar na prevenção e tratamento de algum outro cachorro eu já ficarei muito, muito feliz...

Bom, tudo começou numa quinta-feira (dia 26) antes do feriado prolongado do Dia do Trabalho, primeiro de maio. Meu pai estava lendo um livro à tarde e fazendo carinho na Ramona, na barriga dela. De repente, como comentou mais tarde, ele sentiu um inchaço incomum na barriga dela e ficou com 2 ou 3 ou 15 pulgas atrás da orelha. Quem conhece o corpo de um cachorro pastor alemão sabe que eles costumam ter peito largo e grande, mas possuem uma traseira com cavidade, mais compacta. Um inchaço aí definitivamente não é normal.

Na hora ele resolveu ligar pro médico das nossas cachorras (o sempre atencioso Dr. Luís Leite Jr., que atende todo mundo da Vila Caiçara). Ligou escondido, já que as consultas são caras e minha mãe é a dona da tesouraria. Ele então falou pro veterinário que havia um inchaço redondo do tamanho de um punho fechado de um homem mais ou menos no meio da parte traseira dela. O veterinário nessa hora falou uma coisa que eu nunca mais vou esquecer, obviamente devido ao que aconteceu depois: "eu espero, senhor Orivan (nome do meu pai), que o senhor esteja errado e seja coisa da sua cabeça". O curioso é que na hora em que ele ligou pro médico, minha mãe estava tentando ligar pra casa e as ligações cruzaram. Ela ficou assustada por causa do inchaço e falou pra chamar o médico pra examinar ela naquela hora mesmo.

Depois de alguns toques e olhada geral na Ramona o Dr. Luís mencionou que talvez pudesse ser leucemia ou erliquiose. Interessante... bastava escolher entre câncer no sangue ou parasitose fatal através de uma bactéria assassina. Isso foi na sexta-feira antes de eu sair de Curitiba pro feriado. Cheguei sábado bem cedo e já vi que ela estava bem prostrada, tristezinha. Era difícil detectar algum problema na Ramona. Ela sempre teve uma personalidade bastante calma pra uma pastora alemã, mesmo sendo mestiça. Ela costumava olhar a gente sempre por cima dos olhos, nunca reclamava. Acho que nunca na minha vida eu ouvi ela gemer ou chorar alguma vez, até mesmo nos seus ultimos dias. Isso, somado ao estado dela no dia, tornava impossível a gente perceber que ela estava doente. Só com o inchaço a gente se tocou.

Fizemos um hemograma completo em caráter de urgência e uma ultrasonografia e oficializaram uma esplenomegalia (um grande inchaço no baço), com um nódulo escuro que parecia ser algum líquido acumulado no meio do adbômen. O número de plaquetas no sangue de um cachorro pode variar, em situações normais, de 200 mil à 500 mil, quando estão sadios e fortes. O hemograma dela indicou 10 mil. Havia algo de muito errado e grave com o sangue dela. No entanto, outras coisas dos exames indicavam que não era exatamente leucemia ou algum tipo de câncer na medula.

Na madrugada daquele sábado eu e meu irmão mais novo, Pedro, ficamos até bem tarde pesquisando tudo o que era possível no Google, sites de veterinária, Wikipedia e PDFs com teses e estudos sobre trombocitopenia (que é a redução anormal de plaquetas no sangue) e Ehrlichia canis, que segunda a Wikipedia é uma doença transmitida pelo carrapato-estrela, o marrom com ponto branco nas costas, e que "german shepherd dogs are thought to be particularly affected by the disease". Eu me senti bem nessa noite, não pelo que eu li (que em geral terminava na morte do cachorro de forma bastante triste e rápida), mas pelo conhecimento que eu e meu irmão adquirimos pesquisando. Eu me senti salvando a Ramona, de algum jeito.

Vou tentar fazer um apanhado geral sobre o que pesquisamos.

A erliquia é uma bactéria extremamente severa e quase sempre leva a morte rápida por meio de uma parasitose que costuma ser carregada por carrapatos. Os sintomas são genéricos, coisa de qualquer doença mais complexa: inchaço em algum parte do corpo (não necessariamente no baço, ela ataca bastante o fígado e rins também). Pode haver vômitos e a perda de peso é aguda. A Ramona perdeu muito, quase 1/3 (podíamos contar cada vértebra dela passando os dedos fazendo carinho). Dificuldade respiratória é outro sintoma bem comum e que inclusive acho que foi o que levou a Ramona por fim. Costuma haver mudança na coloração da gengiva, orelhas e parte afetada (as petecas das quais falo mais abaixo). Parece que pardais e outros pássaros são transmissores da erliquia também, que pode até ficar encubada por mais de 2 anos em cachorros até começar a se manifestar de verdade. Ironia do destino, meus pais adoravam os pardais e beija-flores que vinham na varanda de manhã cedinho.

No dia seguinte sumiu o clima de susto e medo e a raiva, a revolta, tomou conta de todo mundo na família. Começamos a ficar estressados e discutir por tudo, cada um tentando prever o que ela tinha, como ela deveria ser tratada. Após outro hemograma completo e uma segunda ultrasonografia pra cruzar os resultados, o médico dela passou a ministrar doxiciclina diariamente (o único antibiótico potente pra erliquiose) pra tentar, mesmo que no escuro e sem confirmação pelos exames, tratar ela de erliquiose.

Ela entrou num tratamento com levedura de cerveja pra injetar alguns nutrientes no organismo e também medicação a base de corticóide. Corticóides costumam ajudar no aumento das plaquetas, mas também derrubam o animal. Se me lembro bem ela tomou nesse mês da doença o Corticorten (prednisona), com interrupção somente na última semana pois suspeitamos que ele estava era sim prejudicando o efeito dos outros remédios. Ele era necessário porque a erliquiose acaba virando uma doença autoimune. O baço começou a processar de forma errada o sangue da Ramona e acabou inchando. Como inchou, a capacidade de processamento aumento também e tudo entrou em loop.

Além de tudo isso, ela estava comendo mal, quase nada. Tentamos fazer ela comer fígado cru pra ajudar no aumento das plaquetas: comeu e cansou. Tentamos depois fígado quente com arroz: comeu e cansou. Depois disso o médico autorizou dar qualquer tipo de comida pra ela, menos gordura. Ração ela já não comia mais, de forma alguma. Se ela comesse qualquer coisa já estava de bom tamanho nessa altura do campeonato. Então ela começou a comer com vontade uma mistura que minha mãe fazia com arroz sem condimentos, carne moída sem tempero algum e cenouras. Ela comia cenouras cruas até, massa! Ficamos felizes, ela parecia reagir.

Pra fazer as ultrasonografias quase semanais nós tivemos que raspar parte da barriga dela, quase metade. Na área onde ela ficou pelada começaram então a aparecer manchas vermelha, de sangue mesmo. Em menos de um dia elas começaram a ficar escuras e saltadas na pele. Chamávamos essas manchas de "petecas". Não sabemos se isso foi pela raspagem, pelo sangue estar fino ou quê, mas pelo que me lembro isso era um indício de erliquiose, infelizmente. De qualquer forma, tínhamos que nos concentrar em não deixar ela desmoronar. O sangue com um número baixo de plaquetas podia acabar gerando hemorrágias no baço dela e perderíamos a Ramona por bobagem. O risco de uma queda ou corte nos fazia tremer. Pra tirar sangue dela os médicos ficavam receosos, porque era muito difícil achar veias usáveis e era judiação com ela ficar removendo o pouco do que ela ainda tinha.

Ramoninha com petecas
As tais petecas de sangue que apareceram no abdômen dela

Tudo foi muito rápido, o quadro de erliquiose muda de forma bastante rápida. Existem casos na Internet de cachorros que não aguentaram 2 semanas. Em quase 35 dias eu fui pra Praia Grande, litoral de São Paulo, umas 4 vezes. Se pudesse eu teria ido mais, com certeza. Compromissos de trabalho (ou a falta dele), faculdade e dinheiro curto são coisas idiotas que te botam pra baixo em situações delicadas como essa. Mesmo de mãos atadas eu tentei estar ao lado dela durante o tratamento.

O tempo ia passando e o inchaço ia piorando velozmente. Chegou uma hora em que ela andava meio torta porque existia algo do tamanho de uma bola de futsal no abdômem dela. Então começaram os inchaços nas patas traseiras dela e acúmulo de líquido. Ela já não andava direito, definitivamente. Trombava em móveis e perdia o equilíbrio. Isso quando se levantava. A carinha de "me ajuda" dela até agora me mareja os olhos. Fizemos tudo o que era humanamente possível por você, Ramoninha. Meu pai teve uma paciência impressionante com ela. Cada remédio na boca era uma luta, uma "brincadeira" de enganar ela com comida pra fazê-la tomar todos. Nos últimos dias do tratamento chegamos a contar um total de 18 comprimidos diários, se não me engano.

Fizemos exames pra checar compatibilidade sanguínea do CJ e da Sheena (ambos filhos da Ramona, ele do meu tio e ela nossa). Na última quinta-feira o meu pai, meu irmão e o pessoal da clínica EmbraVet - incluindo o Dr. Nicolino Laulleta, que até onde eu sei era o patologista que tava acompanhando o caso - ficaram das 4 da tarde até meia-noite fazendo uma transfusão de sangue da Sheena pra Ramona na tentativa de fazer ela melhorar alguma coisa. Quase 20% do sangue da Sheena foi pra Ramona, em gotas, lentamente. O valor de hematócrito dela estava muito abaixo do normal, na casa dos 20 e pouco porcento eu acho, sendo que o esperado é entre 37 e 53% em cães.

Minha ramona magrinha
Ramonete cansada por causa da doença, magrinha

Sábado, dia 2 de junho. Praticamente um mês depois de todo esse inferno o meu irmão saí cedo de casa, por volta das 8 da manhã, e sobe a serra pra São Paulo. Ela levantou os olhos pra ele do colchão onde estava dormindo, ele deu um beijo nela e saiu. Minha mãe me ligou chorando por volta das 10 e pouco pra dizer que a Ramona teve um espasmo e agora, apesar de estar com os olhos abertos, tava com um olhar fixo, respirando muito mal e não respondendo a estímulos como um estalo ou beliscão.

Chamaram imediatamente o Dr. Luís e fiquei com meus pais no telefone. Liguei novamente alguns minutos depois e meu pai não atendeu direito e acabou desligando. Minha preta estava falecendo naquela hora com outro espasmo. Um mês e todo o meu amor por ela foi testado e forçado a sair de dentro de mim. Nossa família se uniu mais durante todo o processo. Depois do almoço liguei pro meu pai e ele estava terminando de limpar o quintal da frente da casa, chorando. Decidimos enterrá-la, com autorização do veterinário, entre os 2 coqueiros que temos na frente da casa, no cantinho de terra onde ela costumava passear. Meu pai preferiu esconder a Sheena, agora orfã, pra ela não ver o lugar e não correr o risco de cavar logo em seguida. Meu pai deitou a nossa Ramona pra sempre como se estivesse dormindo, sobre um montinho de palhas de coqueiro no buraco.

Eu serei eternamente grato aos médicos que ajudaram nesse último mês da Ramona, incluindo o Dr. Luís, que mais do que médico veterinário é nosso amigo e sempre nos deu força. Meu amor por cães foi recompensado quando ele disse que os altos gastos que bancamos no tratamento, a atenção e preocupação com a Ramona e nosso empenho em pesquisar sobre a doença era louvável. Ele disse que nossa família tinha pedigree e isso me emociona até hoje. Me perdoa, Ramoninha. Quase arrisquei meus planos futuros gastando muito dinheiro no tratamento (que pra meu alívio egoísta os meus pais acabaram por devolver), mas eu teria vendido tudo o que eu já comprei, teria gastado tudo o que eu tenho e não tenho pra salvar a minha pequena. Não deu.

A retirada cirúrgica do baço (esplenectomia) era impossível. As plaquetas não aumentavam nunca. Chegaram a subir pra 12 mil, 15, 30 e cairam novamente pra 28. A variação era irrelevante e um cirurgião do Hospital Veterinário da Unimes confirmou o que já nos haviam dito: não se opera cachorros abaixo de 100 mil plaquetas. Até existem casos raros disso, mas é algo absurdamente complicado. Mesmo assim, tentamos a transfusão de sangue pra ela melhorar a ponto de aguentar outras transfusões futuras, aí somente de plaquetas, plasma. Dr. Luís e os outros achavam que até valeria a pena tentar operar ela mesmo assim, já que tudo possível já havia sido examinado, rechecado e nada dava certo. Tiramos chapas de raio-x do pulmão dela também porque se fosse câncer, apesar dessa bagunça de sintomas, poderia haver espalhamento do tumor pelo corpo. Mas estava tudo limpinho, seguro.

Enfim, o quadro clínico extra-oficial acabou sendo Ehrlichia ou Anaplasma platys, uma variação mais rara e difícil de identificar da Ehrlichia canis. Um exame posterior acabou dando negativo pra canis mesmo. Nos últimos dias dela, na última terça-feira pra ser mais exato, eu fui até pra Praia Grande e fui junto levar ela pra fazer outros exames que poderiam confirmar algum câncer de fundo. Deu negativo. Minha última olhada nela foi nesse dia, após voltarmos da clínica e vê-la quietinha numa mesa gelada, quietinha... esperando como uma dama. Me despedi antes de voltar pra Curitiba dando muitos beijos no focinho dela, já magrinho, e disse baixinho pra ela aguentar firme que eu voltaria assim que fosse possível pra brincarmos juntos. Mas ela pra variar me desebedeceu.

Agora temos que cuidar da Sheena e do CJ. Por mais que nenhum deles 3 nunca tenham tido carrapato algum, não fazemos idéia da onde isso veio. Meus pais limpavam e lavavam todo o quintal com frequência, sempre cuidando bem delas. Pra onde meu pai andava as duas iam seguindo, uma de cada lado escoltando ele. Meu medo agora é a Sheena entristecer pela ida da Ramona, e isso não seria nada anormal em se tratando de cachorros. Ela ficou bem pra baixo nas vezes em que a Ramona ficou fora pra fazer exames, não saía do portão. Conversando com meus pais depois eles disseram que a Sheena deu uma fungada no corpo da Ramona, lambeu a boca dela e ficou de lado esperando quando a mãezinha dela faleceu.

Todo mundo ficou triste e choramos muito. Não pela morte em si, mas pela falta que os maravilhosos momentos ao lado da nossa filha farão. Ela não tinha nem 7 anos direito, tava na metade da vida de um pastor alemão normal. Meu pai lembrou depois que a última coisa que aquela manhosa comeu foi chocolate. A danada não comida mais nada nos últimos 3 dias, mas chocolate ela mandou ver. Se foi com a boca doce...

Ramona, perfeita
A melhor cachorra que eu podia esperar ter

Nunca mais eu vou ver aqueles olhos esbugalhados morrendo de vontade de comer algo da mesa. Aquele pêlo típico de pastores alemães que espeta a palma da mão de um jeito engraçado, aquele cheirinho gostoso de cachorro. Nossa, como ela era cheirosa pra mim, até em dias de chuva. Nunca mais eu vou passar a mão nas costas dela enquanto vejo TV, nem mais serei recebido com uma festa de rabo balançando no portão quando chegar de Curitiba. Eu adorava quando ela olhava a gente levantando uma das sobrancelhas, com uma atenção tão discreta. Eu te amei muito, Ramona. Sua preta, negrumisenta maluca.

Morro de medo de perder suas fotos, cada vez que olho pra elas meu peito dói de saudade de você, cachorrosa. Vou te amar pra sempre, minha leguminosa. Você foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida, e eu preferia ter ido no seu lugar. Cada lágrima que eu choro hoje não é nada pra demostrar o quanto eu vou sentir a sua falta. Pra sempre.

You know we're goin' over
Sweet sweet little Ramona
I let her in and I started to cry
And then I knew I wanted to die
Oooh, little Ramona

© caio1982