the understudy traduzido

06 de abril de 2009

Essa é a minha tradução-em-horários-livres do conto, ou crônica, The Understudy do David Sedaris. Falei dele no último post e digitei a íntegra do texto já que não havia online e acessível de graça. Sinceramente não sei o que traduzir de The Understudy, o título, seria algo como A Substituta: O Breve Reinado de Terror De Uma Babá. Sempre tem algum trecho traduzido que merece comentário, mas pra não alongar demais eu vou botá-los todos na parte de comentários do post caso alguém pergunte sobre pontos específicos um dia. Pontos como o porquê de mudar a estrutura de alguns parágrafos ou a forma de citar frases de personagens, por exemplo. Meu fiel revisor oficial foi o Felipe, e o James Martínez ajudou com alguns termos que estavam travando a tradução, ele é um americano que tá aprendendo português via IRC. Enfim, senta que lá vem a história...

Na primavera de 1967 meus pais viajaram pra fora da cidade em um fim de semana, e deixaram minhas quatro irmãs e eu na companhia de uma mulher chamada Sra. Byrd, uma senhora negra que trabalhava como empregada doméstica pra um dos nossos vizinhos. Ela chegou em casa numa sexta-feira à tarde e, depois de levar a mala dela pro quarto dos meus pais, eu fiz um pequeno tour pela casa junto com ela, do jeito que eu imaginava que faziam em hotéis: "essa é a sua televisão, essa varanda é só sua e aqui é o seu banheiro - só seu, de ninguém mais".

A Sra. Byrd colocou as mãos na bochecha: "alguém me belisca, eu acho que vou desmaiar".

Ela se derreteu novamente quando eu abri uma porta do guarda-roupa e falei que tínhamos um closet pros casacos etc e tal. "Tem dois desse ali na parede, você pode usar o da direita".

Isso devia ser, eu imaginava, um sonho pra ela: o seu telefone, a sua camona, o seu chuveiro com box de vidro. Tudo o que você precisava fazer era deixar tudo um pouquinho mais limpo do que quando encontrou.

Alguns meses depois os meus pais viajaram de novo e nos deixaram com a Sra. Robbins, que também era negra e, como a Sra. Byrd, não se importava que eu me visse como um pequeno milagreiro. Noite vinha e eu quase a via de joelhos no carpete, esfregando a colcha da cama dos meus pais com a testa. "Obrigada, senhor, por essa gente branca maravilhosa e tudo que eles me deram nesse grande fim de semana".

Com uma babá adolescente qualquer você zoa, pula na frente dela quando ela está saindo do banheiro, esse tipo de coisa, mas com a Sra. Robbins e a Sra. Byrd nós nos comportávamos e as respeitávamos, totalmente o contrário do que éramos de verdade. Isso tudo tornava a escapada de fim de semana dos nossos pais uma escapada pra gente também - afinal, o que é uma folga dessas senão uma chance de fazer algo diferente?

No comecinho de setembro daquele mesmo ano os meus pais foram com a tia Joyce e o tio Dick para as Ilhas Virgens, por uma semana. Nem a Sra. Byrd ou a Sra. Robbins estavam disponíveis pra tomar conta da gente, até que minha mãe encontrou uma pessoa chamada Sra. Peacock. Exatamente onde ela encontrou aquela mulher seria motivo de especulações pelo resto das nossas infâncias.

"A mamãe já esteve numa prisão feminina alguma vez?", minha irmã Amy perguntaria. "Talvez numa prisão masculina", a Gretchen iria responder, como se ela jamais tivesse se convencido que a Sra. Peacock era de fato uma mulher. A parte do "Sra." era mentira mesmo, isso a gente sabia.

"Ela diz que já foi casada só pras pessoas confiarem nela!!!!". Esse era um dos rabiscos que a gente tinha num caderninho durante o tempo que ela cuidou de nós. Havia páginas disso, tudo escrito numa correria desesperada, com palavras sublinhadas e um monte de exclamações. É o tipo de coisa que você faz quando seu navio está afundando, aquilo que acaba arrepiando os seus entes vivos. "Se a gente soubesse..." diriam eles. "Oh, senhor, se a gente soubesse!".

Mas o que é que eles iriam querer saber? Uma adolescente se oferece pra cuidar dos seus filhos por uma noite e, naturalmente, você conversa com os pais dela sobre isso, dá uma xeretada. Pra uma mulher crescida você não pede referências, especialmente se essa mulher é branca.

A nossa mãe jamais se lembrou de onde ela tirou a Sra. Peacock. "Em um anúncio de jornal", ela diz, ou "sei lá, ela deve ter trabalhado pra alguém do clube".

Mas quem no clube contraria tal criatura? Pra se tornar um membro do clube você precisava atender certas exigências, uma delas sendo que você não podia conhecer pessoas como a Sra. Peacock. Você não vai nos mesmos lugares onde ela come ou reza, tampouco mostra pra pessoas assim o caminho pra sua casa.

Eu senti cheiro de problemas no momento em que o carro dela estacionou, um pedaço de sucata dirigido por um sujeito sem camisa. Ele parecia velho o suficiente pra ter acabado de fazer sua primeira barba e ficou sentado enquanto a coisa atrás dele abria a porta e saía pra fora do carro. Essa era a Sra. Peacock. A primeira coisa que reparei nela foi o cabelo cor de margarina que caia ondulado até a metade das suas costas. É o tipo de cabelo que você imagina numa sereia, totalmente brega pra uma sessentona que não era somente pesada mas gorda mesmo, se movendo como se cada passo fosse o último da sua vida.

Eu gritei "mãe!" e, na mesma hora que minha mãe botou o pé pra fora, o cara sem camisa correu da entrada da garagem e fugiu rua abaixo.

"Era o seu marido?" a minha mãe perguntou, a Sra. Peacock olhou para onde o carro estava parado.

"Nem, era só o Keith", ela respondeu.

Não "o meu sobrinho Keith" ou "Keith, do posto de gasolina, procurado pela polícia em cinco estados", simplesmente "só o Keith", como se a gente tivesse lido o roteiro da vida dela e devêssemos lembrar de todos os personagens.

Ela acabaria fazendo isso várias vezes durante aquela semana, e eu a odiaria por isso. Alguém ligava pra casa e após desligar o telefone ela falava "não quero mais saber do Eugene" ou "falei pra Vicky não me ligar mais aqui".

"Quem é Eugene? O que a Vicky fez de tão ruim?", perguntávamos, e ela dizia pra gente se meter só com as nossas vidas.

Ela era assim... não que se achasse melhor que a gente, mas ela já se achava igual a nós e isso não era verdade, mesmo. Devia ver só a mala dela, amarrada com uma corda! Quando ela resmugava, não dava pra entender nada. Uma pessoa bem educada expressaria alguma admiração ao fazer um tour pela casa, mas além de perguntar algumas coisas sobre o nosso fogão a Sra. Peacock praticamente não falou nada, e ainda deu de ombros quando mostramos o banheiro da suíte, que tem a palavra "suíte" escrita nele e foi feito pra fazer você se sentir poderoso e sortudo por estar ali vivo. A cara dela parecia querer dizer "já vi melhores", mas eu jamais acreditaria nisso.

Nas duas primeiras vezes que meus pais saíram de férias, minha irmã e eu acompanhamos eles até a porta e dissemos que sentiríamos muita saudade. Era só uma ceninha, feita pra gente parecer elegante e ingleses, mas dessa vez a gente realmente estava falando sério. "Parem de manha", nossa mãe falou, "é só por uma semana". Pra Sra. Peacock ela deu aquele olhar de "crianças, o que é que se pode fazer?".

Existe um olhar correspondente que se traduz em "eu que o diga", mas a Sra. Peacock nem o devolveu, ela sabia exatamente o que se poderia fazer: nos escravizar. Não tem outra palavra pra isso. Uma hora depois dos meus pais saírem ela já estava deitada de bruços na cama, vestida só de camisola. Da cor da sua pele, cor de meia-calça, incolor praticamente, que ficava ainda pior com o seu cabelo aloirado. Imagine também as suas pernas de fora, joelhos cavados, ambas riscadas por veias roxas nervosas.

Minhas irmãs e eu tentamos usar de delicadeza: "não tem, quem sabe, nenhuma tarefa pra ser feita?"

"Você aí, a de óculos". A Sra. Peacock apontou pra minha irmã Gretchen. "Sua mãe falou que cês tem refri na geladeira. Por que você não vai pegar um lá pra mim".

"Refri, Coca-Cola?", a Gretchen perguntou.

"Serve", a Sra. Peacock falou, "e bota numa caneca com gelo".

Enquanto a Gretchen pegava a Coca-Cola ela me mandou fechar as cortinas. Pra mim, isso beirava a insanidade, e tentei ao máximo fazê-la mudar de idéia. "A varanda é a melhor parte do seu quarto", eu disse, "você quer mesmo que eu as feche, com esse sol brilhando lá fora?". Sim, ela queria.

Então ela pediu a sua mala. Minha irmã Amy botou a mala na cama e ficamos vendo a Sra. Peacock desamarrar a corda, meter a mão lá dentro e tirar uma varinha de plástico do tamanho de uma régua com uma garra na ponta. O negócio não era maior que a garra de um macaco, os dedos meio curvados pra dentro, como se tivessem travado enquanto imploravam por algo. Era uma coisinha nojenta, as unhas brilhavam de sebo, nós a veríamos bastante até o fim daquela semana. Desde aquele dia, se algum namorado da gente pede uma coçadinha eu e minhas irmãs nos contorcemos. "Se coça você na parede", a gente fala, "arruma uma enfermeira, só não olha pra mim, eu já cumpri a minha pena".

Ninguém conhecia aquela doença no pulso, do túnel do carpo, no fim dos anos 60, porém isso não significava que ela não existia. Só não havia um nome pra ela. Várias e várias vezes roçamos a garrinha nas costas da Sra. Peacock, seus dedos deixavam caminhos e em algumas vezes até feridas. "Pega leve", ela dizia, com as alças da camisola nos cotovelos, seu lado do rosto esmagado contra a colcha dourada da cama. "Num sou feita de pedra".

Isso era óbvio. Pedras não suam. Pedras não fedem ou ficam se coçando, elas certamente não tem pelinhos pretos pipocando entre as omoplatas. A gente comentou sobre isso com a Sra. Peacock, ela respondeu dizendo "Cês tem a mesma porcaria também, eles só não saíram ainda".

Isso foi registrado literalmente no caderninho e lido alto nas diárias reuniões de cúpula que eu e minhas irmãs fazíamos no bosque atrás de casa. "Cês tem a mesma porcaria também, eles só não saíram ainda". Isso soava assustador quando dito por ela, e ainda pior quando falado normalmente, sem o resmungo ou sotaque caipira.

"Não sabe falar inglês", escrevi no caderninho de reclamações. "Não sabe ficar dois minutos sem usar a palavra 'porra'. Não sabe cozinhar ~~porra~~ nenhuma".

O trecho final não era bem verdade, mas não faria mal expandir o seu repertório. Picadinho, picadinho, picadinho, empurrado pra gente como se fosse bife de verdade. Ninguém comia sem merecer, o que significava ter que pegar bebidas pra ela, penteá-la ou passar a garrinha de macaco nas costas dela até que ela gemesse As refeições iam e viam - ela entupida demais de coca-cola e batata chips pra reparar nisso, até algum de nós ousar mencionar o fato. "Se cês tavam com fome, por que não falaram nada? Num sou mágica. Paranormal ou alguma porra dessas".

Então ela saía correndo pela cozinha, mexendo os braços pra cima e pra baixo enquanto jogava a panela no fogo, botava carne moída dentro e tacava ketchup.

Minhas irmãs e eu sentávamos à mesa, mas a Sra. Peacock comia de pé, igual uma vaca, pensamos, igual uma vaca, no telefone: "diz pro Curtis pra mim que se ele não levar a Tanya na audiência do R.C. ele vai ter que se ver comigo e com o Gene Junior, tô falando sério".

As ligações a lembravam que ela não estava no controle das açôes. Os eventos estavam chegando ao limite: aquela novela com o Ray, o negócio entre a Kim e a Lucille, e aqui estava ela, presa no meio do nada. Era assim que ela via a nossa casa: o fim do mundo. Alguns anos depois eu seria o primeiro a concordar com ela, mas quando eu tinha onze anos, e ainda podia sentir o cheiro das vigas de pinho atrás das paredes falsas, eu achava que não existia lugar melhor.

"Eu queria ver onde ela mora", a minha irmã Lisa falou.

E então, como punição, nós vimos.

Isso aconteceu no quinto dia, e foi culpa da Amy, pelo menos segundo a Sra. Peacock. Qualquer adulto responsável, qualquer um com crianças, teria tomado a culpa pra si. Bom, tava marcado pra acontecer mais cedo ou mais tarde, alguém pensaria. Uma menina de sete anos, com o braço já gasto por borracha após horas de coçadas, carregando aquela garrinha até o banheiro da suíte deixa a tal cair no chão. Os dedinhos se despedaçam, não restando nada, um pequeno punho destroçado no fim de uma varinha.

"Agora você conseguiu", a Sra. Peacock falou. Todo mundo pra cama, sem jantar. Na manhã seguinte o Keith apareceu, de novo sem camisa. Ele buzinou na entrada da garagem e ela gritou com ele através da porta fechada pra que ele segurasse as pontas e esperasse.

A Gretchen então disse "eu não acho que ele está te ouvindo", e a Sra. Peacock falou que ela ia ver só. Ela disse que nós todos iríamos ver só. Assim entramos no carro, quietos, o Keith contava uma história maluca sobre ele e alguém chamada Sherwood enquanto ele acelerava pra além da Raleigh que conhecíamos, até uma vizinhança com cachorros latindo e garagens de brita. As casas pareciam desenhos de criança, uns quadrados tortos com triângulos em cima. Uma porta, duas janelas. Imagine alguém botando uma árvore na frente e depois resolvendo apagá-la porque os galhos não são tão bonitos pelo trabalho que dão pra desenhar.

A casa da Sra. Peacock era dividida em duas: a dela nos fundos, e um tal Leslie morando na parte da frente. Um homem chamando Leslie, que estava de farda brincando de lutinha com um doberman perto da caixa do correio quando a gente chegou. Eu pensei que ele se retrairia ao olhar pra Sra. Peacock, mas ele acabou sorrindo e acenando, e ela acenou de volta pra ele. Éramos cinco crianças num banco de trás, crianças loucas pra denunciar que haviam sido sequestradas, mas o tal Leslie não reparou na gente mais do que o Keith havia reparado.

Quando o carro parou a Sra. Peacock se virou do banco da frente e nos disse que ela tinha algumas coisas pra resolver.

"Pode ir, a gente espera aqui", nós falamos.

"Até parece", pro que ela retrucou.

Começamos pelo lado de fora, pegando cocô de cachorro largados por aquele dobermann cujo nome parecia ser Rascal. A frente da casa era um campo minado, porém os fundos, que a Sra. Peacock cuidava, eram surpreendentemente normais, ou pra ser sincero até melhores. Havia um pequeno quintal, com uma fileira de flores baixas contornando ele, acho que eram Amor-Perfeito. Havia ainda mais flores no pátio da porta dela, a maioria em vasos de plástico fazendo companhia pra criaturinhas de cerâmica: um esquilo sem rabo e um sapo sorridente.

Eu imaginava a Sra. Peacock como uma pessoa a quem a palavra "beleza" não fazia sentido, entrar na parte dela da casa e ver aquilo cheio de bonecas foi impressionante. Devia haver uma centena delas ali, todas empilhadas num único quarto. Havia bonecas sentadas na televisão, bonecas grudadas de pé em cima do ventilador e um outro monte delas entulhadas em prateleiras do chão ao teto. Estranhei o fato de ela não as ter até separado por tamanho e tipo. Tinha até uma modelinho com vestido estiloso, eclipsada por um bebê chorão, ou o que parecia uma criança que havia chegado muito perto de uma panela, pontas dos cabelos queimadas e com uma cara desfigurada de tanto choro.

"A regra número um é que ninguém encosta em nada", a Sra. Peacock disse. "Ninguém, por nada."

Ela obviamente imaginava que a sua casa era algo especial, um paraíso para crianças, uma terra de encantamentos, mas pra mim ela parecia só um depósito.

"Escuro, quente e fedido" as minhas irmãs diriam também.

A Sra. Peacock tinha um daqueles porta-copos de parede, acima do criado-mudo dela. Do lado da porta do banheiro ela deixava as suas pantufas, com uma daquelas bonecas Magic Duende dentro de cada uma, seus cabelos pra trás como que soprados por um vendaval. "Olha só, é como se elas estivessem em lanchas!" ela nos disse. "É..." a gente falou, "que legal...".

Então ela nos mostrou uma cozinha de brinquedo que estava em uma das prateleiras baixas. "A geladeirinha quebrou, então fiz outra usando uma caixa de fósforos. Se chegarem perto vocês conseguem ver".

"Você mesma fez isso?" a gente disse pra ela, apesar da resposta ser óbvia. A lixa lateral de fósforo entregou tudo.

A Sra. Peacock estava claramente tentando ser uma boa anfitriã, mas eu queria que ela parasse com isso. A minha opinião sobre ela já havia sido formada, até mesmo em papel, e no final as pequenas gentilezas dela só manchariam a sua ficha. Como qualquer garoto na quinta-série, eu preferia que os meus vilões fossem maus e que permanecessem assim, que fossem mais Dráculas do que Frankensteins, que arruinou toda a história ao dar uma flor pra aquela garota camponesa. Ele meio que compensou isso ao afogar ela minutos depois, mas... mesmo assim, não era possível olhar pra ele do mesmo jeito novamente.

Eu e minhas irmãs não queríamos entender a Sra. Peacock. A gente só queria odiá-la, e nos sentimos aliviados quando ela tirou outro coçador do armário, um bem bom, pelo jeito. Esse não era maior que o anterior, mas a ponta era menos rústica e mais bem definida, como a mão de uma moça e não de um macaco. No momento em que ela pegou o coçador a suposta hospitalidade finalmente desapareceu. Ela arrancou a camisa masculina que estava usando sobre a camisola e se posicionou na cama, cercada de bonecas as quais ela se referia como "bebêzinhas". A Gretchen ficou com o primeiro round, o resto da gente foi lá pra fora arrancar ervas daninhas naquele sol de rachar.

"Graças a deus" eu falei pra Lisa. "Eu já tava preocupado que a gente teria que ter pena dela".

Quando éramos crianças achávamos que a Sra. Peacock era maluca, um termo genérico que usávamos pra qualquer um que não notasse os nossos talentos. Como adultos, porém, analisando melhor a gente chega a pensar se ela não era clinicamente depressiva. As drásticas alterações de humor, tantas horas dormindo, uma melancolia tão forte que ela era incapaz de se vestir ou se limpar - por isso usava camisolas, por isso aquele cabelo cada vez mais ensebado e que deixou uma mancha permanente na colcha dourada dos meus pais.

"Fico imaginando se ela já foi internada alguma vez", a Lisa disse um dia. "Talvez ela passou por tratamentos de choque, era o que eles faziam naquela época, coitada".

Quem dera a gente tivesse sido sensíveis desse jeito quando éramos crianças, mas a gente já tinha demais com o que se preocupar, seria impensável a gente ligar pra uma caixa de fósforos velha mais do que ligávamos pra outra coisa qualquer. Nossos pais voltaram das férias e antes que pudessem botar o pé pra fora do carro nós pulamos em cima deles, um bando, todo mundo falando ao mesmo tempo. "Ela levou a gente pro barraco dela e nos fez catar cocô de cachorro!", "uma vez ela botou a gente na cama sem janta!", "ela falou que o banheiro da suíte era feio, e que é estúpido ter um ar-condicionado!"

"Tá, tá" a nossa mãe falou. "Meu deus, se acalmem!"

"Ela fez a gente coçar as costas dela até os nosso braços quase caírem!", "ela fazia picadinho pra comer com pão toda noite, e quando o pão acabou ela disse pra gente comer com bolachas!"

A gente ainda tava falando quando a Sra. Peacock saiu da mesa do café e foi pra garagem. Ela havia se arrumado, pela primeira vez, estava até de sapatos, mas já era meio tarde pra fingir ser alguém normal. Na presença da minha mãe, que estava bronzeada e bonitona, ela parecia ainda mais doente, quase sinistra, aquela boca torta num sorriso bizarro.

"Ela ficou a semana toda na cama e só foi lavar as roupas ontem à noite!"

Acho que eu estava esperando alguma reação mais violenta da minha mãe. Como explicar a minha decepção quando, ao invés de esbofetear a Sra. Peacock na cara, elas se olharam nos olhos e ela disse "falem sério, eu não acredito em nada disso"? Era o tipo de frase que ela usava quando acreditava em tudinho, mas estava cansada demais pra ligar.

"Mas ela sequestrou a gente!"

"Bom, azar dela", e a nossa mãe acompanhou a Sra. Peacock pra dentro e deixou a gente ali, parados na garagem. "Eles não são terríveis?" ela disse, "juro por deus, eu não sei como você aguentou eles por uma semana toda".

"Você não sabe como ela aguentou a gente?"

E a porta fez tum!, bem na nossa cara, enquanto a nossa mãe levava sua visita pra sentar na mesinha e beber alguma coisa.

Lá dentro da janela elas pareciam atrizes num palco, duas personagens que pareciam opostas e de repente descobrem que tem muito em comum: uma infância difícil, o gosto por vinhos baratos e um desprezo mútuo pelo público jovem e mal criado que vaiava por detrás das cortinas.

UPDATE: arrumei um sexismo em "dois personagens" e aceitei a sugestão de título do Felipe.

© caio1982