o causo do albergue

31 de agosto de 2009

O causo abaixo estava marcado como rascunho há quase 1 ano, resolvi criar coragem e publicá-lo.

Aquele foi o primeiro albergue em que fiquei na vida, e possivelmente vou me lembrar dele sempre que me hospedar em um outro. Os belgas sabem fazer um lugar simples parecer bonito e ainda ser barato. Depois de algumas horas de viagem balançando em um trem, eu estava louco pra achar uma cama e descansar. Se possível com uma boa chuveirada antes, daquele tipo quente-arranca-pele, pra tirar a sujeira e me renovar. Eu estava realmente louco por uma, mas ao mesmo tempo minhas pálpebras estavam pesadas demais, pesadas, eu capotava de sono. Pesadas. Eu mal parava em pé. Naquele quarto, naquele albergue bastante simpático, eu iria dividir o espaço com outras três pessoas. Não que eu não tivesse reparado nelas quando cheguei, eu estava cansado demais pra isso e todo mundo entrava e saía com frequência, só fui conhecer os tipos tarde da noite, conforme cada um voltava da sua primeira noitada local.

Logo chegou um tal britânico, um tipo magrelo e branquíssimo, com um pomo-de-adão tão saltado que parecia que ele tinha engolido uma bola de tênis. Não sei se essa é a personalidade mais comum na Inglaterra, mas eu praticamente só ouvi sua voz uma ou duas vezes naquela semana, e ainda assim eram coisas como g'day ou hello mait. De resto... ele estava imensamente alegre em te conhecer? Um aceno de sobrancelha bastaria pra ele. Ele estava com infecção urinária e precisava de uma ambulância desesperadamente? Claro, ele devia pensar, um aceno levantando esse meu queixo pontiagudo resolve. Quando me acostumei com o jeito reservado dele e já estava quase dormindo, a porta foi aberta por uma silhueta que me assustou um bocado.

Não é fácil abrir os olhos às duas da manhã e ignorar que um contorno de quase 2 metros de altura, careca e forte como um touro, está carregando uma mochila nos ombros e diz, dirigindo-se a você, um hellou! com sotaque alemão. A mochila era só um pequeno detalhe, ela fazia o papel que uma bolsa da Hello Kitty faria nos ombros de um ciclope ridiculamente alto e musculoso. Aquela careca... não tinha como não pensar em neonazistas do noticiário, eu puxei a ponta do cobertor até quase o meu nariz e, que ironia, acenei com a sobrancelha no melhor estilo inglês, me borrando inteiro. Se naquela hora ele me falasse que o céu era cor-de-violeta, eu prontamente concordaria. Eu não resisti, fingi estar dormindo só pra ver aquela monstruosidade subir uma escadinha vertical até o segundo andar do beliche de madeira que havia no quarto. Tudo rangia, cada ripa de madeira gritava por sua mamãezinha. Era preciso ter uma certa fé no fabricante daquele beliche pra se dormir em paz no primeiro andar, mas o inglês parecia estar mais interessado em contar suas ovelhas. Foi então que, nessa mesma hora, aquela coisa surgiu.

Não me recordo em que hora exatamente tudo isso aconteceu, mas eu novamente perdi meu sono quando tudo já estava bastante escuro. Aquele escuro silencioso, especial, de quando se acorda de madrugada e a cidade inteira dorme, nada se mexe. Todos já haviam chegado, até o cara que iria dormir na cama ao lado da minha, as únicas individuais, privilégio de quem chega e bota a mochila primeiro sobre o colchão plastificado do albergue. De repente, grrr orrwaah uhurrrrrggghhhh roooonnccc! Se com o alemão a madeira do beliche já havia sofrido demais, com o ronco do cara ao meu lado provavelmente toda a estrutura de metal reforçado do prédio sofreu algum dano naquele momento. Eu tentei ignorar, afinal era só um ronquinho. Todo mundo ronca às vezes. Grrr orrwaah uhurrrrrggghhhh roooonnccc ele fez de novo. Não era só um ronco, havia repetição exata de cada fonema gutural que ele fazia, tinha ritmo. Aposto que era ensaiado.

Eu ficava me virando constantemente, tentando dormir assim mesmo. Certa hora da noite eu abri os olhos mais por instinto do que outra coisa, aquela passada de vista que se faz de vez em quando, bem displicente. Os olhos do tal alemão estavam vidrados em mim, eles brilhavam no escuro iguais olhos de gatos. Aquilo só podia significar duas coisas: ele estava me medindo pra ver se os pedaços cortados do meu corpo caberiam na mochilinha de criança dele ou ele simplesmente também não conseguia dormir com aquela barulheira. Isso tudo logo na primeira noite, só porque eu queria muito dormir em paz.

Algumas vezes de madrugada eu me cobria, virava, tentava abafar o som, mas não dava! Aquilo não parava de grrr orrwaah uhurrrrrggghhhh roooonnccc, e eu só pensava não tenta falar comigo! não fala comigo, porra! Ele já estava na minha cabeça, mal sabia eu que nos dias seguintes eu não conseguiria tirar seu ronco do pensamento. Eu iria ler alguma coisa no trono do banheiro e grrr orrwaah uhurrrrrggghhhh roooonnccc. Eu pedia uma porção de batata frita ao belga simpático que ficava na esquina e ele me respondia grrr orrwaah uhurrrrrggghhhh roooonnccc ao me dar o troco. Eu nunca tinha acordado antes com o ronco de alguém, até aquela semana.

Quando notei, já estava acordando às cinco horas com o sol na minha cara, com os olhos inchados sem dormir direito. Tendo viajado bastante até ali, já estava mais que na hora de tomar um belo banho, afinal. Todos os meus cantos estavam suados. Pessoas dariam a vida naquela hora pra eu ir pro chuveiro e não verem meu suor escorrer já velho. Eu já tinha minha própria pequena mata atlântica, imagine àrvores espaçadas, ambiente húmido e estável. Tempo depois vem uma torrente de água, lenta mas interrompível, escorrendo morro abaixo. As árvores não se molham, elas se lambuzam, é como mergulhar um ipê com tronco e tudo numa bacia de banha de porco. Era assim que as minhas dobras estavam naquela manhã. Eu já havia superado meu problema com os companheiros de quarto, agora estava na hora de resolver a sina dos viajantes: o fedor.

Como muitas pessoas, os meus melhores momentos de relaxamento são no banheiro. Talvez nem todo mundo admita isso em público, mas tente fazer um olhar inquiridor pra alguém na rua, numa fila, como se questionasse ela com você também, fala a verdade! e perceberá isso. Infelizmente não foi o caso no tal banheiro do tal quarto do tal albergue. Ele possuía dispositivos destinados a tortura dos visitantes. Era entrar no box esperando água quente e a porta pesada de vidro vinha lentamente encostar gelada nas suas costas. Você abria ela e ela se fechava novamente.

Isso não seria um problema caso o resto compensasse, mas pra ligar o chuveiro era necessário apertar constantemente um botão quadrado na parede, grande, parecido com um botão de descarga de privada. Cada vez que você soltava aquele botão a água parava de sair. Ok, vamos apertar de novo o tal botão... mas a maldita água voltava a sair gelada e demorava uns bons segundos até que esquentasse de novo! Imagine um pobre viajante com uma perna esticada, torta, segurando a porta do box que insistia em abrir, e com um braço esticado pressionando o botão do chuveiro o tempo todo.

Tentei de tudo pra criar um sistema que funcionasse, tentei empurrar o botão do chuveiro com o cotovelo e nada. Tentei até segurar o botão pressionado usando um lado da bunda, mas ali sempre sobrava um quadrado do tamanho do botão do chuveiro sem limpar, complicava um pouco a higiene. O botão era baixo demais pra algumas partes do corpo, tentei até usar em vão as minhas costelinhas! Tentei inclusive tomar banho numa perna só, enquanto a outra ficava dobrada pro joelho pressionar o maldito botão.

Bom, aquilo era o melhor que eu podia pagar mesmo. Quem se importaria de passar por uma situação dessas pagando quase nada? Alguém mais apertado financeiramente do que eu deveria achar tudo aquilo o sétimo céu. Quando você procura um chuveiro, desesperadamente, tudo o que você quer é entrar debaixo de um pouco de água quente, a água te faz um carinho e leva a sujeira embora, dá vontade de falar me abraça chuveiro! e não sair dali. Dá vontade de descansar debaixo da água quente por horas. Mas não, os malditos belgas construtores de albergues de tortura não iriam permitir que isso acontecesse. Com os olhos ensaboados eu dava murros na parede ao invés de acertar o botão do chuveiro, de raiva.

Certa vez saí do banho, enfim vencedor, me troquei e resolvi abrir a janela pra arejar um pouco o quarto. Era uma janela enorme, a maior que eu já vi na minha vida inteira. Era quase da altura da minha coxa até o teto, largura de quase uma pequena parede toda. A janela em si era uma tampa enorme de vidro grosso com uma borda fina de madeira, nem sei se dá pra chamar de janela mesmo, era uma peça inteiriça. Quem projetou esse tipo de janela provavelmente precisava passar móveis enormes por ela, aí dá pra imaginar. Simplesmente segui a usabilidade do momento e tentei mexer a trava da janela pra fora. De repente aquilo tudo ruiu e veio caindo pra cima de mim.

Me dei conta, então, que esse era mais um truque dos comediantes belgas: a janela abria ao contrário. A base dela era fixa, presa, ela não abria horizontalmente, abria de cima para baixo, pra que quando chovesse não entrasse água por ali. Se ela abrisse horizontalmente teria infiltração e em algum momento, de tão grande que ela era, alguém não a alcançaria pra fechar. Até meio genial eu diria, mas tudo o que eu conseguia pensar naquela hora era que tinha que segurar aquela tampa gigante de vidro, de qualquer maneira. Entrei num certo pânico ao pensar que o neonazista ou o monstro poderiam não gostar de ver aquilo se esborrachar no chão logo cedo de manhã, mas aprendi a usar a janela. Me senti um desbravador no final das contas.

Relembrando agora... na verdade o lugar era bastante agradável. Minha dieta se resumia a tomar coca-cola de uma máquina automática e comer batata frita na barraquinha da esquina. Me acostumei com os companheiros de quarto e fiz as pazes com aquele chuveiro temperamental. Tive uma excelente semana e aproveitei bastante, o quanto pude, arrependimento zero. O vento aparecia com frequência, o sol idem. Tudo no albergue era até bem limpo, certamente devo ter exagerado um pouco sobre o quarto. Talvez seja assim porque experiências imediatas são vistas pela gente como se ainda fôssemos crianças: tudo é grande, tudo é pesado, tudo está em alta-exposição e colorido demais. Tenho certeza que daqui alguns anos conseguirei parar de ter pesadelos com aqueles malditos belgas.

© caio1982