vitimização e dor alheia

30 de abril de 2010

Colagem de anotações, viagens, pensamentos, coisas editadas através de vários dias e humores.

Eu nunca gostei muito da idéia de me fazer de vítima, e por não gostar acabo sempre me levando a abominar isso nos outros. É difícil definir o que é se fazer de vítima, mas como é algo que todo mundo já ouviu ou presenciou pelo menos uma vez na vida acho que o significado comum é bom o suficiente. Da vitimização materna e paterna fazendo charme pros filhos, que todo mundo sofre em algum momento, à de amigos ou terceiros na rua. Recentemente comecei a pensar bastante nisso e como isso andava me afetando, na maioria dos casos me fazendo pegar raiva de certos tipos de comportamento, e então ao invés de ficar pensando e falando como a vitimização dos outros me irrita bastante, como se fosse um velho chato, eu decidi dar uma chance e comecei a pensar, a partir de umas memórias quase esquecidas, como eu poderia fazer igual mas não o fiz. Como eu tinha tudo pra me encaixar no papel de vítima do sistema, ou vítima divina, ou vítima de XYZ mas consegui me recusar a isso e como passei a detestar qualquer coisa que lembrasse remotamente esse tipo de atitude.

Pra mim vitimização parece fazer sentido como tentar se tornar vítima de um acontecimento qualquer, de forma consciente ou não, invariavelmente tirando de si a responsabilidade pelos próprios atos e abrindo mão do comando da sua vida num momento XYZ, como se alguém te devesse alguma coisa ou devesse fazer algo no seu lugar porque você é frágil demais. Isso costuma apitar trocentos tipos de alarmes pra mim. Claro que todo ser humano vai se fazer de vítima em algum momento, querendo ou não é parte da nossa natureza quem-não-chora-não-mama e acontece até com bastante frequência eu diria, mas algumas pessoas tem isso como modo padrão de se comportar. Ignorando a origem da palavra vitimização e o significado absoluto dela, afinal nem sei se a palavra existe realmente, virtualmente toda criatura no planeta sofreu, sofre ou sofrerá. De alguma forma, em algum momento.

Cheguei nisso após lembrar e pensar um pouco pelo que vivi quando era uma criança e adolescente mais ou menos normal. Não é um assunto que goste de falar em público (por ignorância popular e preconceito, não faço questão tampouco culpo ninguém) mas percebi então que já tinha resolvido esse problema comigo mesmo, virou algo que não poderia me afetar mais e talvez fosse bom botar pra fora, até mesmo pra quem eu amo e quem diz me amar compreender melhor isso. Começou meio como aquela coisa de escrever no caderno em momento de nervosismo e depois de dias rasgar e jogar fora, enfim. Nunca gostei de papéis de vítimas porque eu sempre tentei não me botar em um, quase como tarefa diária, tentei ao máximo me segurar. Em retrospecto, acho que fui muito bem sucedido apesar da condição de epiléptico.

Sempre neguei pra mim mesmo que eu tinha um problema. Pensando novamente naquela época, provavelmente foram meus pais que mais martelaram na minha cabeça que eu era de fato normal, não tinha problema algum e que epilepsia era "ok", mas as caras de preocupação deles, os pânicos por não ter tomado meus remédios algumas vezes e o que eu sentia dentro de mim me diziam o contrário. Hoje eu consigo ver isso. Eu nunca me senti normal, esse é o problema, pra mim eu sempre tive e sempre terei um defeito, por mais que me digam o contrário. O que ganhei ou perdi tendo esse defeito é outra história, mas eu tinha medo até pouco tempo de me "assumir" por receio de querer aparecer, já que no meu próprio círculo de amizades era relativamente fácil achar um coitado chorando pelos cantos da internet e eu simplesmente não queria ser associado a eles.

Eu não consigo lembrar direito até hoje como tudo começou, mas lembro de estar jogando Atari na sala com alguns colegas do bairro (provavelmente Frostbite, meu jogo favorito quando moleque lá em Tucuruí, no Pará). Eu lembro de subir no sofá que ficava próximo a janela, que pela casa ser acima do nível do terreno era bem mais alta que uma janela qualquer. Lembro de botar um pé entre o vão do sofá e a janela e outra perna pra fora da casa, meio montado como se o batente da janela fosse um muro. Eu estava balançando as pernas. Só lembro disso e de acordar em um hospital com a sensação de despertar após dormir um sono pesado. Pra mim nada tinha acontecido, mas pra quem estava lá eu, sabe-se lá como, despenquei de cabeça pro lado da rua onde era de cimento. Tenho em vídeo uma cena que mostra essa parte da casa e quando revi outro dia a fita eu me assustei com a altura, desde meus 9 anos eu não via o lugar, confesso que me arrepiou um pouco rever uma simples... janela. Nunca entendi direito o que aconteceu, meus pais nunca explicaram isso pra mim provavelmente porque os médicos também não sabiam explicar pra eles: tive minha primeira convulsão antes ou depois de cair da janela?

Minha segunda crise foi durante um banho de manhã, ainda lá em Tucuruí. Nas manhãs eu acordava e vez ou outra ia para o banheiro que ficava no quarto dos meus pais e todo mundo se arrumava pra ir pra escola e ir trabalhar. Lembro de estar me lavando e o banheiro estar cheio de vapor com meu pai lá e minha mãe se arrumando. Depois disso só me lembro de estar vomitando todo torto dentro do carro de alguém, e depois acordando numa maca tomando soro ou coisa parecida. Não sei se apaguei durante muito tempo, em todas as vezes eu não tinha memória de nada antes, durante ou depois, só depois de muito tempo elas começavam a vir em pedaços. Mas essa vez foi diferente da primeira porque eu estava só com meus pais, então eles me viram pela primeira vez tendo uma convulsão, não sei o que sentiram. Na primeira meus amigos provavelmente ficaram assustados, e de certa forma hoje fico aliviado de não terem me visto uma segunda vez, éramos todos muito meninos, pelo menos meninos demais pra esse tipo de coisa eu imagino. Até hoje consigo descrever em detalhes físicos absurdos tanto a sala quanto o banheiro onde as duas primeiras crises aconteceram.

No começo da adolescência tive mais uma crise, durante um treino de karatê já morando em Praia Grande, litoral de SP. Só lembro de estar fazendo alongamentos no pescoço quando aconteceu: pescoço pra um lado, pro outro, pra frente... pra trás e chão. Reto, rígido, olhos virados com mãos e pés curvados pra dentro pelo que ouvi dizerem. Acordei deitado em um banco de madeira em um corredor que dava pros fundos da academia, na minha cabeça não lembro de ninguém ter ficado comigo nem ter me ajudado a ir pra casa. Se teve alguém eu realmente não me lembro, mas foi isso que nos meus 12 anos me fez perceber que eu estava sozinho, por conta própria, e não deveria esperar dó, pena ou um papel de vítima pronto da mão de ninguém. Desde aquele primeiro incidente, desde o segundo, desde o terceiro em diante meus exames nunca mais foram normais, sempre indicavam alguma "diferença" no resultado esperado: ou riscos de um gráfico diferentes do normal, ou valores numa tabela acima ou abaixo de alguma expectativa qualquer. "Fica tranquilo meu filho, mas um dos lados do seu cérebro tem fios desencapados e soltando faíscas, às vezes dá curto" parecia ser a analogia favorita de todo mundo. Parabéns, você agora faz parte de um seleto grupo de pessoas no mundo que tem um problema antigamente visto como possessão demoníaca contagiosa. Ótimo, fico feliz por ouvir isso. Sério, fico mesmo.

Aproximadamente dos meus 8 aos meus 21 anos eu tomei remédios que eram pra controlar a epilepsia, como Tegretol e Depakene (famosos entre epilépticos mas que ninguém se importou em me contar que eram usados por bipolares e esquizofrênicos também, provavelmente pra não me assustar por pouca coisa) ou pra compensar os efeitos negativos deles mesmo, como cápsulas de Forten e os gigantescos comprimidos de Supradyn, que tomo até hoje quando me sinto cansado demais. Possivelmente eu tentei outros remédios no meio do caminho, mas eu não tenho memórias boas de nenhum pra dizer com total certeza. Sei, porém, que parte das minhas sonolências e preguiça era por causa dos remédios e fico feliz de não tomar mais nada que me deixe minimamente fora de um estado normal de razão. Pra ser bem franco eu não sei se lembro de todos os remédios nem a quantidade, eu simplesmente tomava, eu engolia qualquer coisa que os médicos e meus pais mandassem. Até porcarias de homeopatia eu tive que engolir, sessões inúteis de acupuntura, até ir levado contra minha vontade em centros espíritas eu fui. Mas eu entendo meus pais. Eu sabia que precisava de remédios pra ficar "bem", então por oposição eu concluí muito cedo que eu não estava bem nunca. Algum tempo antes de sair da casa dos meus pais eu parei de tomar o último deles (Depakene), e desde então tenho me controlado pra tomar menos remédios pra dor de cabeça também, mas isso é bem mais difícil. Eu ouvia dizerem que existia a chance de eu tomar remédios pra sempre, mas com esforço o tratamento resolveria tudo. Já das dores de cabeça eu tenho certeza que não me livrarei jamais.

Aprendi com o tempo a conviver com as dores de cabeça, houve tempo que eu tomava em goles os remédios pra tentar aliviá-las, quase não sentia efeito deles mais. Aí comecei de propósito a aturar mais elas pra não depender tanto de remédios que poderiam sei lá como não fazer muito bem. Desde a minha infância eu sinto dores de cabeça praticamente todos os dias mesmo, então valia a pena tentar e funcionou. Sempre que ouço alguém falar de dor de cabeça me lembro das minhas, penso que "está reclamando por nada" e me recordo das vezes que sentia pontadas tão fortes que chegava a entortar o rosto quando tava sozinho e podia deixar a dor fluir, ou ter de fingir que era bobagem na frente dos outros enquanto tudo doía demais. Minha cara feia nas manhãs? Dor de cabeça. É difícil pra mim até de vez em quando relaxar o rosto e a expressão franzida, naturalmente cultivada com certo orgulho mas muito por causa das dores de cabeça. Nesse exato momento em que estou digitando tudo isso eu estou com dor de cabeça, dando puxadas no lado esquerdo da parte da frente da cabeça.

Não tem um canto da minha cabeça que não tenha doído até hoje, e de formas variadas. Tem a que pulsa lentamente mas com extremos fortes, tem a que pulsa rápido e você se acostuma bem, tem o tipo que dá pontadas aleatórias que me fazem até dar uma tremida, tem as de deixar a frente da cabeça pesada quase tombando, tem as da base de trás da cabeça, tem as comuns nas têmporas, tem uma bem dolorida no topo da cabeça que parece alguém apertando pra baixo, tem uma que parece que entra raios de luz pelos olhos e refletem em cantos aleatórios no fundo da cabeça como se ela fosse vazia, tem a de hipersensibilidade que qualquer luz mais forte ou som agudo faz tudo brilhar e ecoar trinando no ouvido, mas a minha raríssima porém sempre preferida é a que dói a cabeça toda o tempo todo como um inchaço e sinto como se fosse entrar em combustão espontânea de tanto calor.

Hoje as tenho mais brandas, ou pelo menos já me acostumei demais, mas logo que comecei a morar sozinho eu entrava em desespero mais facilmente por causa delas e tentava sempre não demonstrar que eram difíceis. Virou costume ficar no escuro em silêncio com a cabeça molhada perto de alguma fonte de vento, pra refrescar, como eu às vezes fazia ainda quando morava com meus pais mesmo, tentando sincronizar as ondas de dor pra poder respirar, louco pra meter uma broca de furadeira no meio da minha testa pra fazer a dor parar de uma vez. A paranóia com elas era constante, sempre ouvi os neurologistas e meus pais falando que elas eram o primeiro sinal antes das luzes, e essas o primeiro sinal antes de passar mal, ter a piscada final, escurerer e ter uma convulsão. As tais luzes devem me perseguir até hoje, sabe aquelas bolinhas coloridas que se vê quando olha pra uma fonte de luz num certo ângulo, tipo em fotografia? É algo parecido com isso, só que piscando sem parar em todos os lados, aleatoriamente, e sem você conseguir focar em nada. Ainda vejo elas um pouco quando fico muito exausto mentalmente e fisicamente, mas não aparecem mais com as dores de cabeça, o que pra mim é curioso (e não sei explicar).

A última vez que as vi com frequência diária já vai tempo, talvez um ou dois anos. Foi quando refiz minha última bateria de exames pra rechecagem e revivi um pouco do que pra mim eram aventuras de criança com pitadas de sadismo se você pensar que eu era um moleque sem entender o que estava acontecendo. Meus pais talvez tenham lembranças mais apreensivas e preocupadas, mas enfim. De todos os exames o meu preferido era a ressonância magnética ou tomografia do cérebro, nunca entendi se havia diferença entre elas ou qual eu fazia já que a forma era bem parecida: parece um sarcófago misturado com túnel do tempo e os resultados do exame são belas fotografias em corte do seu cérebro em todo o seu esplendor. Muito legal, acho bem geek até. Barulho grave constante, sons de catracas e máquinas fotográficas, salas frias só comigo dentro e uma jaula no meu rosto como se eu estivesse quase hannibalzado. Esse era tão divertido e relativamente aconchegante que eu cheguei a cochilar uma vez durante um exame, não sei o que começou a apitar e entraram correndo na sala pra ver se tava tudo bem.

O exame que eu mais detestava era o eletroencefalograma, eletrodos plugados no couro do cabelo, enfermeiras estranhas e metas impossíveis de se conseguir numa folha de papel que lembra muito aquelas medições de terremotos. Botavam uma lâmpada com luz estrobosfóbica piscando a um palmo dos meus olhos. Primeiro lentamente, depois de forma bem rápida, alternando. Durante os trechos rápidos ficava tão claro que mesmo de olhos fechados era tudo branco piscando. O mais difícil era quando pediam pra eu não mover os globos dos olhos, mesmo estando fechandos. Parece que cada vez que eu movia os olhos bruscamente enquanto o estrobo piscava na cara o exame falhava e tinha que recomeçar, dessa vez realmente sem mexer nada. Já tentou não mexer os olhos olhando pra uma lâmpada? Pois é. Não me pergunte por que não gosto de sair à noite, ir em baladas ou lugares com luzes piscando coloridas.

Eu sou muito grato por ter pais que se preocupavam, que faziam de tudo e me levavam onde fosse pra fazer exames e entender o problema. Não ignoro que tive privilégios e muita sorte nisso. Não é todo mundo que pode pegar um avião do meio do mato e ir pra capital mais próxima fazer exames. Até hoje tenho a recordação de Belém daquela época: lixo na rua, mangueiras enormes em praças e assistir Tron pela primeira vez. Pra mim viajar pra fazer exames era um misto de aventura com um protocolo que eu simplesmente tinha que seguir porque meus pais queriam. Se tudo isso foi um fator pra minha família voltar pra São Paulo eu não sei, mas gosto de pensar que sim pois provavelmente isso me ajudou. Médicos, exames e remédios no sudeste é bem diferente de médicos, exames e remédios no meio da Amazônia. Fui privilegiado tanto em cuidados quanto em gravidade.

Me recordo de uma vez indo entre cidades do interior de SP com um primo nas férias, entrando numa cidade vizinha qualquer vimos uma roda de pessoas e um cara deitado no meio da rua. Achei que fosse um bêbado, ou no máximo um acidente. Quando chegamos perto eu não sei o que estavam pensando, mas eu sabia que o senhor de roupa surrada no asfalto quente estava tendo um ataque. Ninguém ajudou o senhor, eu não ajudei, eu só fiquei olhando, parado. Ele provavelmente nunca nem soube pelo que passava. Algumas pessoas me viram ter os ataques, mas eu não fazia idéia como era de verdade, acho que ali foi a primeira vez que vi um outro epiléptico durante uma crise, não foi nada bonito mas me deu uma certa perspectiva. Já no fim da adolescência eu conheci em círculos de software livre um outro geek que sempre respeitei bastante mas que por motivos óbvios não tem como identificar aqui, ele sofre de uma doença degenerativa e ter conhecido ele, saber como ele era absurdamente competente no trabalho e em tudo o que fazia... foi iluminador também. Nunca pude me identificar com ele e falar isso, não sei se ele se ofenderia e duvido que ele acabe lendo isso, mas ele me inspirou por tudo o que deve ter passado e por onde chegou, meu problema era nada perto dos dessas pessoas.

Pra ser bem sincero hoje eu nem sei se sou ou se simplesmente fui epiléptico, mas continuo mais me identificando com eles do que com pessoas sem a condição. Eu sei que meu cérebro não é igual ao seu de alguma forma, ou se hoje ele clinicamente é, um dia não foi e ele teve que se adaptar em alguma coisa que desconheço. Por mais científico que isso devesse ser, afinal o cérebro é só um amontado de coisas mesmo, o resultado do que eu penso não é matemático, mas mesmo se fosse eu diria que 1+1 pro meu cérebro pode dar um resultado diferente e eu não saberia explicar mas sentiria mesmo assim. De qualquer maneira, jamais me viram me fazendo de vítima por causa disso, nem irão. Eu acredito que não tenho condição moral de me fazer de vítima e com todo o respeito e licença devida: provavelmente ninguém tem esse direito, fale o que falar.

Tenho noção que por mais que tudo isso soe bizarro e grave, não é tanto assim se você conhece algo da condição de ser epiléptico. Muita gente sofre de tipos de epilepsia muito piores que o meu, tem ataques com muito mais frequência e resultados bem mais catastróficos. Nem mesmo sou o único epilético na família, e até me surpreendo comigo mesmo por nunca ter investigado de verdade o que eu tinha. Muitos conceitos do problema e memórias que eu tenho são meio infantilizadas, pois a grande maioria é de quando era menino. Eu nem sei se cheguei a ter outras crises ou princípios delas, se meus pais e os médicos falavam que não eu tinha que acreditar já que não lembrava de nada. Foi só outro dia que descobri que o que eu tinha pareciar ter um nome, minha mãe havia comentado uma ou duas vezes mas eu tinha arquivado o que era, Síndrome de Janz, um tipo relativamente comum de epilepsia juvenil. Comum o suficiente pra ninguém chamar assim e simplesmente dizerem "epilepsia" mesmo. Mas com um nome bonito assim dá até pra posar de estiloso por aí e é claro que também eu soube me divertir com tudo isso, tinha que valer a pena já que era pra eu me foder. Até o colegial eu vivia assustando colegas me fazendo de louco, usei isso muito pra brincar de assustar as pessoas que não me conheciam ainda e se impressionavam ao ouvir de mim "epilepsia" pela primeira vez. Pegadinha do malandro! Se elas eram preconceituosas eu me dava o direito de ser filho da puta.

Tomar remédios, ir pra hospital, se sentir diferente, sentir dor... todo mundo pode passar por isso, e pra cada um será diferente, dor é subjetiva demais e não tem porque ficar fazendo drama para os outros por causa disso. Faça só pra você, criar um clube de minorias coitadas me parece uma saída fácil demais. Não existe experiência mais especial que a outra. Muitas vezes eu mesmo chorei seco, sozinho, com a cabeça prestes a explodir, achando que ia conseguir fazer a dor parar e com raiva de mim mesmo, por ter um defeito justo na parte mais importante do meu corpo. Eu me culpei muito por um tempo, como se eu pudesse fazer alguma coisa e não estivesse me esforçando o suficiente pra ser normal como meus amigos eram. Tive muitas paranóias secretas do tipo "será que sendo assim vou arrumar uma namorada igual os meninos da rua?", "será que sou idiota de nascimento mas não percebo?", "e se daqui X anos eu tiver outra crise?", "acho que meus pais se arrependeram de me ter como filho", "quem diz me amar me ama mesmo ou é pena?", "será que contaram pra tal pessoa? ela me olha de um jeito estranho", "porque ficam chamando fulano de gardenal? isso não é engraçado", "será que não é melhor eu não ter filhos? vai que passa".

Era eu ter o prazer de morar perto de uma praia mas não poder ir sozinho ou pro fundo no mar (embora nesse caso eu ía mesmo assim). Era me sentir independente por dentro mas não poder andar sozinho ou sem avisar como, onde e porquê, ainda que mesmo sozinho as preocupações eram sempre minhas companheiras. Era ter um formulário qualquer que eu era o único a preencher o campo de observações médicas. Era com extrema vergonha precisar avisar chefes e professores pro caso de haver uma emergência. O único na fila de cueca pro alistamento militar a carregar chapas da cabeça debaixo do braço, pro caso de eventualmente precisar exigir a dispensa. Mas ninguém, nunca, me ouviu falar disso como se estivesse me auto-depreciando. Talvez meus pais, provavelmente eles na verdade, tenham percebido tudo isso, mas nunca conversei muito sobre esses problemas com eles. Não tão abertamente, acho. Na minha cabeça com curto eles não poderiam jamais entender, eles não sofriam da mesma coisa. Se eu decido hoje comentar sobre tudo o que senti é porque não aguentava mais ver próximos de mim em situação parecida e eu não falando nada, é insuportável. Eu aguento um chinês do outro lado do mundo fazendo manha, eu aguento um mineiro lá longe, mas alguém do meu lado me irrita profundamente. Assim como ninguém consegue saber pelo que eu passei, tenho certeza que eu jamais saberei pelo que passam. Quer falar fala, só não fique martelando isso todos os dias no ouvido dos outros. Se é zero a zero, ninguém deve ganhar o papel de vítima do show.

Se falo tudo isso é porque resolvi ser meu próprio psicólogo conversando sobre isso comigo mesmo, ao invés de gastar dinheiro pagando pra outra pessoa me analisar. Isso talvez mostre o motivo de eu achar absurdo alguém tomar comprimidos pra depressão, gastar horrores com análise e ficar na internet choramingando em busca de migalhas de dó e colhendo só desprezo. A diferença pra mim é basicamente você querer dizer pros outros como você é um coitado que sofre, uma vítima de algo diabólico contra você, que tudo é muito difícil. Ninguém é tão importante pra ser vítima de coisa alguma. A vida é assim. Pronto e acabou. Me incomoda é quando a carência temporária vira o modus operandi da pessoa, ela vive em função do papel que ela criou pra si, forçando a imagem passiva dela esperando alguma coisa dos outros, nem que seja uma vantagenzinha mínima pra se aliviar ou um agradozinho por ser especial. Eu já passei por isso também, já toquei muito o foda-se quando era adolescente, forçava pra me cansar, forçava ficar acordado de madrugada com raiva de tudo e todos louco pra ter um ataque só por privação de sono e cansaço, covarde como era, e finalmente mostrar pros meus pais como é que se faz. Não, não acho que tenha valido a pena um dia sequer, eu era de um extremo amadorismo nisso.

Na minha filosofia de vida não há como evitar sentir dor, somente variar o grau e a duração, é parte de todo e qualquer ser humano. Eu mesmo em tudo o que falei aqui provavelmente não trouxe nenhuma novidade pra nenhum primata bípede dos últimos milhares de anos. Então, dizer diariamente que sofre, ou pior, que sofre mais que os outros, e se fazer de coitado ou vítima de algo não faz sentido algum e acaba só por ofender a inteligência alheia. Não há como dizer que se sofre mais ou "melhor" que ninguém, meta a mão na cara de quem disser o contrário na sua frente. Todo mundo sente dor, alguns gostam de dizer ela pro mundo e outros gostam de trabalhar ela internamente. Só isso. O porquê de eu achar um absurdo todo mundo ficar querendo mostrar sua dor pros outros seguiu até aqui, espero ter deixado claro com tantas repetições da mesma coisa como me parece ridículo pensar "mas você não sabe como eu sofro, não tem idéia de como é, é diferente!". O que li outro dia através de comentários de amigos veio bem a calhar sobre tudo isso que eu andava pensando, aliás. Como a maioria das pessoas é exposta a culturas e histórias super dramáticas e melodramas feitos para serem insuperáveis elas tendem a se identificar e achar que a vida delas tem que ser igual: contos de fadas noir cheios de baixas depressivas, inesquecíveis e que deveriam virar um livro com final feliz, best-seller, vendo drama onde ele não existe. A vida é assim e só, não exagere.

É estranho que eu tenha vivido tudo isso na sombra, aceitando meus pais dizendo que "isso não é nada, é bobagem" mas vendo minha mãe segurar o choro olhando pra mim menino num consultório. Não sei por quanto tempo engoli isso, mas quando eu passei a dizer pra mim mesmo que eu era diferente, mas que aceitava isso, eu passei a viver melhor comigo mesmo, e isso é algo bem recente. Tenho certeza absoluta que tudo isso contribuiu bastante pro que eu sou hoje: minha recusa teimosa por qualquer religiosidade ou teísmo tem explicação nisso, minha independência de pensamento sempre forçada com medo de me sentir influenciado demais, meu niilismo e vontade de que sempre me deixem em paz, meu desprezo por quem faz cara de choro por qualquer coisa, até parte da minha grosseria e do meu humor eu vejo como um certo tipo de proteção criada a partir de tudo o que descrevi nesse texto, eu não me importo se incomoda. Tudo isso foi muito forte no que eu tenho agora como identidade, não posso ignorar que parte de mim depende dessa antiga e parcial identidade de epiléptico. Paciência, acontece. Espero sinceramente que durante esses anos todos eu só não tenha inconscientemente caído no papel de vítima doente, pois o contrário disso foi e sempre será meu maior objetivo. Todo mundo tem motivos, se todo mundo fosse fazer esse papel o mundo seria muito mais dramático (e insuportável) do que já é, por isso abomino qualquer um que tente se passar por isso. É egoísmo. Só não digo que é cuspir na dor alheia porque já sou frequentemente acusado disso mesmo, mas aí está toda minha justificativa.

Agora que eu já parei de fingir estar reclamando pra falar de mim antes que as memórias sumissem e eu não pudesse registrá-las mais, ou seria o contrário, vai saber, e se serve de explicação final, novamente o poema do William Ernest Henley que virou um preferido e carrego sempre comigo desde que conheci ele, foi realmente um achado e vou encher o saco alheio com ele por muito tempo ainda. O autor nunca passou de mediano, mas teve seus quinze minutos de fama por total merecimento. Quando soube que ele foi bastante doente, sempre pendendo entre lá e cá e mesmo assim ignorou inspirações divinas e ainda escreveu isso... impressiona. Eu nunca vou me esquecer de Invictus precisamente por isso.

Quem quer, faz. Quem quer, fala. Quem quer, é. Porra.
Invictus, William Ernest Henley

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